Lei Henry Borel não protegeu menina assassinada
Mãe e padrasto foram presos pela morte da menina de 2 anos, caso que chocou pela crueldade e negligência
Desde maio do ano passado está em vigência a Lei nº 13.444, que ganhou o nome de Lei Henry Borel, menção ao menino morto no Rio de Janeiro após agressões praticadas pelo padrasto, o então vereador Jairo Souza Santos Junior, segundo a acusação do Ministério Público. A norma, que trouxe como padrão para as crianças e adolescentes mecanismos de proteção como os que são aplicados na Lei Maria da Penha, não foi suficiente para assegurar que a menina de dois anos, que morreu na tarde de quinta-feira, em Campo Grande, tivesse um ambiente seguro e protegido para viver, afastada da violência.
O pai da criança até que se esforçou, mas não chegou perto de ficar com a guarda da pequena.
A menina passou mal na casa onde morava, na Vila Nasser, região da saída para Rochedinho, e já chegou sem vida no posto de saúde. A mãe, Stephanie de Jesus da Silva, e o padrasto, Christian Campoçano Leitheim, foram presos.
A lei, aprovada pelo Congresso Nacional, alterou artigos de várias normas, incluindo o Código Penal, prevendo pena mais elevada no crime de homicídio cometido contra menores de idade, de 12 a 30 anos, com possibilidade aumento de até 2/3, e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ela define que é dever do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, que envolve as autoridades administrativas e do sistema de justiça, mapear, evitar a violência e sua reiteração, além de garantir atendimento e segurança.
Conforme apurou a reportagem, a rede tão bem delineada no papel não funcionou no caso da criança. O pai registrou dois boletins relatando violência. O primeiro relatava maus tratos, acabou arquivado no Juizado Especial por falta de provas.
Neste episódio, o pai contou à polícia que a filha costumava apresentar hematomas e a ex-sogra havia relatado que Stephanie maltratava a criança, inclusive repreendeu-a. Ambas foram ouvidas na fase policial apenas, a mãe negou agressão e a sogra considerou que poderia ter sido pontual porque a filha estava gravida novamente e nervosa.
A pequena não foi ouvida por meio da chamada escuta especializada, outro avanço da lei para dar mais proteção às crianças vítimas de violência. Na época, ela não tinha ainda dois anos de idade.
O arquivamento foi publicado pela Vara do Juizado em 21 de novembro, com manifestação favorável da Promotoria.
Exatamente no dia seguinte em que o BO foi arquivado, 22 de novembro, o pai novamente denunciou hematomas e levou a criança com a perna quebrada até à delegacia. Mais uma vez, o caso foi registrado como maus tratos, uma imputação menos grave. A reportagem ouviu ontem a advogada Janice Andrade, que acompanhava uma mãe na delegacia na ocasião e comoveu-se ao ver a cena do pai e filha no saguão da Depac e os questionamentos entre escrivães sobre como enquadrar a situação que se repetia.
A reportagem ainda não obteve informações do Judiciário e do Ministério Público sobre o andamento desse segundo inquérito, concluído e encaminhado pela Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente à Justiça.
O pai ainda procurou a Defensoria Pública para pedir ajuda planejando obter a guarda da criança e também foi ao Conselho Tutelar, que chegou a ir à residência onde a menina vivia, mas não viu evidências de maus-tratos e o caso “se perdeu”, conforme a reportagem ouviu da representante. A burocracia imobilizou o desejo do pai.
Pela lei, na esfera policial, em caso de suspeita de violência, entre várias medidas, a autoridade pode afastar a criança do agressor, prendê-lo, o que também cabe ao Judiciário.
Na esfera da Justiça, quando feito pedido de medidas protetivas, elas podem ser adotadas de imediato, sem nem mesmo audiência ou manifestação do Ministério Público, dada a urgência. Entre as medidas constam o afastamento do agressor, o impedimento de visitas, prisão e colocação da criança em outra família para assegurar sua integridade.
A lei prevê também uma série de medidas para proteger as pessoas que tiverem conhecimento de violência, como forma de encorajá-las a fazer a denúncia, oferecer segurança e compensação. No caso da menina morta, vizinhos relataram, sob proteção da identidade, uma rotina tumultuada na casa. Até violência contra o cão de estimação foi parar na polícia. A lei Henry Borel inclui pena para quem descumpre medida imposta.
Anteontem, ao contar que viu a criança em novembro com o pai na delegacia, a advogada Janice chorou ao perceber a impotência diante do sistema que falhou. “Me sinto um lixo”, resumiu. Ela atende mães de forma voluntária e falou sobre a esperança de ver a rede de atendimento mais eficiente e assegurando a tão defendida proteção integral das crianças.
FONTE: Campo Grande News