Campo Grande desaprova prefeita Adriana Lopes

Campo Grande desaprova prefeita Adriana Lopes

Capital é uma das cidades mais felizes do país, apesar da reprovação

Como é possível que uma cidade cuja prefeita enfrenta 65% de desaprovação apareça entre as 20 mais felizes do Brasil? Em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, essa aparente contradição revela mais do que uma disputa entre estatísticas — escancara a complexidade da vida urbana brasileira, onde avanços estruturais convivem com sentimentos de abandono, e onde políticas públicas pontuais não são suficientes para apagar a frustração diante da má gestão.

De um lado, o Instituto Ranking Brasil mostra que Adriane Lopes (PP) amarga forte rejeição popular: quase dois terços da população reprova sua administração. Do outro, levantamento nacional baseado em critérios da ONU, divulgado pela Revista Bula, coloca Campo Grande como a 19ª cidade mais feliz do país, com nota 7,38. A capital sul-mato-grossense é elogiada por sua segurança, qualidade de vida e investimentos em infraestrutura e saúde preventiva.

A coexistência desses dois retratos da cidade expõe uma tensão fundamental do cenário político contemporâneo: a distância entre indicadores objetivos e percepções subjetivas do cotidiano. E, como a filosofia política de Hannah Arendt já nos ensinava, a verdade política muitas vezes não está apenas nos números, mas na forma como as pessoas vivem — ou sentem — o mundo ao seu redor.

A cidade que funciona… mas não para todos

O reconhecimento de Campo Grande como uma das cidades mais felizes do Brasil não é fortuito. A capital é considerada a sexta mais segura entre as capitais, e projetos como a “Casa Rosa”, voltado ao diagnóstico precoce do câncer de mama, elevaram os padrões de cuidado com a saúde feminina. Houve ainda revitalização de parques, praças e 40 quilômetros de ruas.

Esses pontos contam a história de uma cidade que, em parte, funciona. O levantamento da Bula — inspirado no World Happiness Report da ONU — utilizou critérios como segurança, bem-estar, saúde, infraestrutura e relações sociais para medir o grau de felicidade urbana. A média das 12 dimensões avaliadas posicionou Campo Grande à frente de capitais importantes como Recife, Belo Horizonte e Brasília.

Mas se a cidade parece caminhar bem, por que tantos moradores se dizem frustrados? A resposta está nos detalhes ignorados pelo marketing institucional — e nas promessas que viraram dívidas morais com o eleitorado.

A prefeita e a promessa do hospital que não saiu do papel

A maior cobrança da população recai sobre uma promessa central da campanha de Adriane Lopes: a construção do hospital municipal. Segundo a pesquisa do Instituto Ranking Brasil, 24,5% dos entrevistados listaram a ausência do hospital como uma das maiores decepções da gestão.

Embora a prefeitura tenha anunciado, em setembro de 2025, o resultado da licitação da obra, a credibilidade do processo foi manchada. A empresa vencedora, Health Brasil Inteligência em Saúde, é ré por desvio de R$ 46 milhões e foi denunciada na Operação Turn Off com base na Lei Anticorrupção. Seu proprietário, Rodolfo Pinheiro Holsback, doou R$ 100 mil à campanha de Lídio Lopes, deputado estadual e marido da prefeita, em 2018. O caso alimenta a percepção de que a administração atual mantém vínculos promíscuos entre o público e o privado.

Além do hospital, a pesquisa revelou uma enxurrada de reclamações: falta de médicos, escassez de medicamentos, ambulâncias paradas, buracos nas ruas, violência contra mulheres e ausência de apoio às mães atípicas. A insatisfação não é apenas técnica, é emocional — e profundamente política.

Felicidade seletiva, democracia em alerta

A inclusão de Campo Grande entre as cidades mais felizes do país não deve ser descartada como farsa. Pelo contrário: ela serve de alerta. Segundo o estudo, o objetivo era identificar onde “o Brasil funciona”, onde as políticas públicas “produzem bem-estar tangível” e onde “os cidadãos sentem que podem confiar uns nos outros”. Mas a cidade que funciona não é necessariamente a mesma para todos os seus moradores.

O cientista político Bruno Speck, professor da USP, afirma que “em democracias fragilizadas, é comum haver uma dissonância entre indicadores macro e microexperiências do cidadão. A democracia exige mais do que segurança e infraestrutura: ela exige escuta, coerência e compromisso com o coletivo”.

O caso campo-grandense ecoa essa dissonância. Quando a Revista Bula fala em “tempo, espaço e dignidade para viver melhor”, parece descrever um ideal que, na prática, não alcança boa parte da população da periferia, das mães solo ou dos que enfrentam o colapso da saúde pública.

A urgência de um pacto social mais amplo

Os dados da pesquisa mostram ainda um cenário de desconfiança sistêmica. Problemas como corrupção (17,3%), inflação (16,8%), falta de administração (10,6%) e compra de votos (4,6%) foram citados com frequência. A desaprovação não se limita à figura da prefeita: é um reflexo de um sistema político percebido como ineficaz ou, pior, indiferente.

Ao lado disso, iniciativas pontuais — como a CPI do Ônibus, elogiada por 6,7% dos entrevistados — indicam que há espaço para reconstruir confiança. Mas isso exige uma ruptura com o modelo clientelista e opaco que ainda define boa parte da política local.

Como afirmou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, “as estruturas sociais e os discursos políticos tendem a naturalizar desigualdades que são, na verdade, escolhas”. Campo Grande vive hoje essa encruzilhada: entre uma cidade que parece feliz nos números e outra que, nas ruas, clama por dignidade e por um governo que a represente de fato.

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