Grilagem em MS: terra pública, lucro privado

Grilagem em MS: terra pública, lucro privado

Na manhã desta quarta (8), a Polícia Federal deflagrou a Operação Pantanal Terra Nullius, revelando mais do que um sofisticado esquema de grilagem: expôs uma estrutura profundamente enraizada na apropriação privada de terras públicas, praticada com a colaboração ativa de agentes públicos.

A operação cumpriu dez mandados de busca e apreensão em condomínios de alto padrão de Campo Grande e Rio Brilhante, decretando ainda o bloqueio de bens que podem ultrapassar R$ 3 milhões. O alvo: empresários, fazendeiros e servidores da Agência de Desenvolvimento Agrário (Agraer), envolvidos na falsificação de documentos para registrar como privadas áreas da União no interior do Parque Estadual do Pantanal do Rio Negro, na região de fronteira com a Bolívia.

O nome da operação é emblemático: Terra Nullius, conceito jurídico colonial utilizado para justificar a ocupação de territórios supostamente “vazios” — ou desprovidos de “civilização” — durante o processo de colonização. Ao usá-lo, a Polícia Federal não apenas denuncia a fraude, mas reconhece um dos principais vetores de conflito fundiário e socioambiental do país: a doutrina de que toda terra sem título formal é terra sem dono — mesmo que esteja protegida por lei, ocupada por comunidades tradicionais ou faça parte de reservas ambientais.

Entre o latifúndio e o crime de colarinho branco

Segundo a investigação, o esquema contava com a inserção de documentos falsos em processos administrativos de regularização fundiária, manobra realizada com o apoio direto de servidores públicos. As fraudes envolviam também a emissão e comercialização indevida de Cotas de Reserva Ambiental (CRA) — os chamados Títulos de Cota de Reserva Ambiental Estadual (TCRAE) — que, por sua natureza, deveriam representar áreas legalmente protegidas, usadas para compensação ambiental. Ao serem vinculadas a propriedades obtidas por meio de documentação fraudulenta, essas cotas deixavam de ser instrumentos de preservação para se transformar em moedas especulativas no mercado ruralista.

A apropriação de terras públicas — prática que remonta aos sesmeiros e aos coronéis do ciclo da cana e do gado — continua a ser, no Brasil contemporâneo, um dos pilares invisíveis da concentração fundiária e da devastação ambiental, particularmente na Amazônia Legal, no Cerrado e, agora, de maneira ainda mais evidente, no bioma pantaneiro.

Dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) mostram que o Brasil possui cerca de 100 milhões de hectares de terras devolutas federais e estaduais — uma área maior do que a do Egito — boa parte delas em disputa ou ocupadas irregularmente. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) aponta que cerca de 30% da área grilada no país envolve fraudes documentais com a conivência do poder público.

Quando o papel carimba a fraude

O uso do aparato estatal para validar ilegalidades fundiárias não é novidade, mas continua escandaloso. A participação de servidores da Agraer, autarquia estadual responsável por promover o desenvolvimento agrário e a extensão rural, evidencia como o aparelho público pode ser instrumentalizado não para garantir direitos territoriais, mas para beneficiar elites econômicas com acesso à máquina burocrática. A falsidade ideológica, o uso de dados falsos em sistemas públicos e a associação criminosa apontada pela Polícia Federal demonstram um padrão que a socióloga Maria Rita Kehl chamou de “normalização do arbítrio” — a transformação do desvio em norma.

O processo de grilagem exposto nesta operação é ainda mais grave por atingir uma área de extrema relevância ambiental: o Pantanal sul-mato-grossense, reconhecido como Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco, e que já perdeu, entre 2020 e 2023, mais de 17% de sua cobertura vegetal em razão de queimadas criminosas e expansão agropecuária, segundo o MapBiomas. A posse fraudulenta de terras no interior de um Parque Estadual representa não apenas um ataque à legalidade fundiária, mas uma ameaça direta à conservação da biodiversidade e à soberania ambiental brasileira.

Terra, mercado e poder

O filósofo brasileiro José de Souza Martins escreveu, em O Cativeiro da Terra (1979), que o latifúndio no Brasil “não é apenas uma grande propriedade: é uma estrutura de poder social e político.” A grilagem moderna, com seu verniz tecnocrático e sua sofisticação jurídica, nada mais é do que a atualização dessa estrutura. Ela opera sob a lógica de que a propriedade vale mais que o território, o título mais que a terra, e o lucro mais que a lei.

A reação do governo estadual — que, por ora, limitou-se a declarar “colaboração” com a apuração — será decisiva. A responsabilização efetiva de servidores públicos envolvidos em crimes ambientais e fundiários não é apenas uma exigência legal, mas um teste da capacidade das instituições de romper com o ciclo histórico de impunidade que marca os conflitos por terra no Brasil.

Democracia e terra: uma disputa inconclusa

O Brasil jamais concluiu sua reforma agrária. Desde o fim da ditadura, com a promulgação da Constituição de 1988, a questão fundiária foi progressivamente empurrada para a margem da agenda pública. Nos governos recentes, o desmonte das estruturas de fiscalização ambiental e agrária agravou o cenário. Em 2020, o então presidente Jair Bolsonaro afirmou, em discurso, que “no Brasil, não tem mais demarcação de terra indígena”. A frase ressoou como política de Estado.

No entanto, a Constituição é clara: as terras da União são inalienáveis e imprescritíveis, e sua titulação exige critérios legais, ambientais e sociais. A apropriação dessas áreas por elites econômicas, mesmo com aval de documentos falsos ou servidores coniventes, constitui usurpação do patrimônio público e violação direta da soberania nacional.

Como afirmou o jurista Dalmo Dallari, “a função social da propriedade não é uma concessão generosa da lei, mas a condição fundamental de legitimidade do domínio.”

A Operação Pantanal Terra Nullius não é apenas uma ação repressiva da Polícia Federal. É um espelho daquilo que o Brasil ainda precisa enfrentar: o pacto silencioso entre elites fundiárias, fraudes documentais e Estado ausente — ou cúmplice. O Pantanal, com sua beleza exuberante e fragilidade ecológica, tornou-se mais uma fronteira onde se joga o futuro da legalidade, da justiça e da própria democracia brasileira.

Denunciar a grilagem não é apenas proteger árvores, bichos e rios. É defender o princípio de que a terra pública deve servir ao interesse público — e não aos esquemas de sempre.

O que é grilagem?

A grilagem de terras é uma prática ilegal e historicamente enraizada no Brasil, que consiste na apropriação fraudulenta de áreas públicas ou privadas por meio da falsificação de documentos, registros cartoriais e processos administrativos. Seu nome remonta a uma técnica antiga em que papéis falsos eram colocados em gavetas com grilos vivos, para que ganhassem aparência de velhos e legítimos. No contexto contemporâneo, essa prática evoluiu em sofisticação, envolvendo desde falsificações rudimentares até esquemas complexos de corrupção institucionalizada. A grilagem está diretamente ligada à expansão desordenada da fronteira agrícola, à violência no campo, à expulsão de comunidades tradicionais e à devastação ambiental em biomas estratégicos como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal. Mais do que um crime contra o patrimônio público, ela é expressão de uma lógica predatória que trata a terra como mercadoria e o Estado como fiador da impunidade.

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